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UM VERÃO RADIANTE

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Será um verão radiante. Teremos celebrações acaloradas, grandes mesas repletas de comida, brindes aos quais responderemos sem pensar. O abraço pronto para ser deflagrado, lágrimas nos cantos dos olhos que teimaremos em esconder. Dormiremos abraçados a inebriantes lembranças, certos de que, ao despertar, não faltará amor. Teremos virtudes corrompidas, perigosas indulgências. Reputações cairão por terra, amizades serão destroçadas. Mas ainda assim prevalecerá o amor. E haverá gestos mesquinhos, ressentimentos familiares, mais uma briga com o vizinho, a recusa de uma esmola. E mesmo que não seja evidente, haverá amor. A mulher descobrirá que nutre o mais profundo desprezo pelo marido, enquanto ele leva pelo braço a criança embevecida até o mar. Contudo, ao ritmo das ondas que lamberão seus pés, não faltará amor. Alguém cometerá um crime hediondo, logo estampado com gosto nas capas dos jornais. Então homens e mulheres, cheios de rancor, clamarão por vingança e justiça cega para o a

O DILEMA DA CAIXINHA

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(Publicada em 18.12.08, na Gazeta da Aclimação) Chega o Natal e elas se proliferam – as caixinhas. Grandes, enfeitadas, discretas, diminutas, onipresentes. Estão na portaria do prédio, nos restaurantes, no estacionamento. Quem decide o formato que devem ter? Imagino os funcionários se reunindo para deliberar: este ano vai ser maior, o pessoal está mais generoso. Ou então, provavelmente uma voz mais lúcida recomenda caixinha menor, a crise está aí, difícil ignorar qualquer trocado, pouco sobra para gestos de desprendimento. Será mesmo? A marola da economia estremecendo o espírito do Natal? O fato é que as caixinhas já estão aí, silenciosas, intimidadoras, esperando a nossa manifestação de bom grado. Quase impossível ignorar seu apelo no bar em que tomo café todas as manhãs. O pão na chapa chega no capricho. O caixa sorri com mais intensidade, estimulado pela proximidade da caixinha, bem ali, ao alcance da mão. Daí você, sem perceber, já foi fisgado. Faço uma anotação mental que preci

DISQUE MÃE

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Os irmãos não falam entre si. Usam a mãe como intermediário. Ela gasta uma grana em celular para manter vivo o diálogo da prole. — Fulano não vem. A mulher quer passar o dia com a sogra. — Todo o ano é a mesma coisa. Aquela perua... Quando a atitude é grave, o gesto é digno de reprimenda, a mãe deixa nas entrelinhas seu desacordo. Mas na maioria das vezes ela aquiesce, magnânima: — Deixa ele de fora dessa vez. Dia das mães é todo dia. Mãe é clichê. É porto seguro. Lições de sabedoria. É a consciência de que somos mesquinhos, egoístas, prepotentes. — Traz a cerveja que seu cunhado gosta, vai. Faz um esforço pra agradar dessa vez. Almoço de domingo, a mensalidade da escola dos meninos vencida, presente ordinário guardado às pressas, traição com a vizinha ainda corroendo o casamento que já esmorece, filho que abusa do entorpecente, a matriarca bêbada e depressiva, todos brindam à mãe. Ela sempre tem razão.

É TUDO VERDADE, OU COMO O PAUL MCCARTNEY VIROU FIGURINHA FÁCIL NO BRASIL

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Em 1990, o Paul McCartney resolveu finalmente vir para o Brasil (depois virou festa e ele agora não sai mais daqui). E já chegou em grande estilo, Maracanã pra 200 mil pessoas e tudo. Durante muito tempo, foi o recorde de público mundial. Juntamos umas economias, eu e o primo, e fomos pro Rio de Janeiro de busão. Lembro da alegria ao retirar o ingresso dias antes, num posto de combustível, parceiro da turnê. Aquele show foi um acontecimento desde o começo. Teve fã que comprou duas entradas e guardou uma como suvenir. A viagem – minha primeira para o Rio – foi um perrengue. O Cometa quebrou na Dutra. Esperamos um tempão na estrada até chegar outra condução. Depois, para economizar, fomos a pé da rodoviária até o estádio. Naquela correria, nem deu tempo de ir no banheiro. Quando as luzes apagaram e o Paul atacou Jet, meu primo não teve dúvida: se aliviou ali mesmo. Duvido que o sujeito que levou o jato de urina à frente dele tenha notado alguma coisa, no meio daquela comoção. Acho que

FLAUBERT E DOSTOIEVSKI

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Novembro marca o nascimento de Dostoievski. Dezembro, Flaubert. Cada um a seu tempo e estilo se dedicou a perscrutar o que a alma tem de insondável. Ambos eram filhos de médicos. O doutor Flaubert era o cirurgião-chefe do hospital de Rouen, na Normandia (“meu pai salva os estúpidos para que continuem com sua estupidez”). Dostoievski pai também era militar e clinicava no Hospital Maria, em Moscou. Enquanto Flaubert cultivou sua escrita em uma existência solitária, vez ou outra interrompida por uma viagem até Paris para se encontrar com os literatos da época, Dostoievski precisou conviver com situações em que precisava escrever com urgência – atuou também no jornalismo – para pagar as dívidas (inclusive as que contraía nas mesas de jogo, vício que manteve até o fim). Porém, o ensaísta Otto Maria Carpeaux argumenta, em artigo publicado na extinta revista Manchete, que o russo não era descuidado com sua produção (“seus manuscritos estão cheios de modificações, correções, emendas, linhas r

A COROA DE FLORES

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Os filhos chegariam cedo. Ele acordou como sempre, sem sofreguidão, um velho cansado da vida. Ao despertar estremunhado seria imposta, ele sabia, uma espera surda. Por uma viagem que ele não queria fazer. Amulher já ralhava com ele, sem motivo aparente. Estava órfão aos 65 anos, sem lembranças felizes, sem lágrimas a derramar. Como pode um homem não chorar a morte da mãe? Se soubesse a resposta, poderia replicar a mulher, como era de seu feitio. Mas não sabia, e aquela falta de emoção o deixava envergonhado. Agarrou-se ao portão da casa que caía aos pedaços e de lá não sairia, até que Pedro e Raul chegassem para levá-lo até o enterro. Enfim apontaram na ladeira, desviando o carro das crianças que disputavam uma ruidosa pelada. Pedro, o caçula, mal esperou ele destravar o portão. Com um cumprimento rápido, seguiu a passos largos pelo corredor que dava na cozinha da casa. Queria acabar logo com o protocolo familiar e seguir viagem. Raul, o primogênito, ficou ali em frente ao Celta pra

DESPERDÍCIO

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Não quis um amor de verdade. Perdeu-se entre tatuagens. E outro amor pela metade.