HOMEM-PLACA

O homem-placa estava de bobeira no viaduto do Chá, fazendo troça com os amigos, quando outro homem-placa lhe empurrou com força. Viu-se em pleno ar, desabando com placa e tudo rumo ao chão de granito do Anhangabaú. Num ato de desespero, estendeu os braços agarrados às placas e elas inesperadamente o salvaram. Eram como asas, e ele fazia ali, sem querer, seu vôo inaugural de celebridade, assunto principal no noticiário da tevê. Deixou a vida nas ruas e ganhou os ares. Primeiro achou que seria útil no trânsito. Ajudava velhinhas a atravessar a rua, fazia as vezes de ambulância, levava feridos até o hospital. As crianças apontavam: “homem-placa, homem placa”, e se abalavam para acompanhá-lo do chão, ele lá em cima encabulado em seu sonho de quem descobre novas proezas. Depois, mais confiante, voltou-se para missões mais arriscadas. Pairava sobre seqüestros, assaltos e tiroteios, pronto para o rasante salvador. Apenas na madrugada, saudoso de outros tempos, ousava descansar sentado no antigo letreiro do Mappin, ainda assim atento aos bêbados que deixavam os pés-sujos das redondezas. Numa tarde, em uma perseguição a um motoqueiro meliante, espatifou-se de encontro a um monte de entulho. Num salto, safou-se do pior, mas as placas ficaram inutilizadas. O prefeito logo acudiu, prometendo apurar quem eram os responsáveis pelo fatídico entulho. E anunciou que uma marca de refrigerantes patrocinaria, por fabulosa quantia, nova placa para o herói da cidade. Botaram data de inauguração, e o povo compareceu em peso ao Anhangabaú, ele vestido para a festa com as novas placas, tapinha de prefeito nas costas, atrapalhando a concentração. Terminadas as formalidades, saltou para o horizonte diante dele. Mas, para decepção de todos, não galgou o céu, nem mesmo planou suavemente, como costumava fazer. Veio abaixo trazendo anunciante novo nos ombros. Não fosse ter se agarradora a uma palmeira, teria se esborrachado num canteiro. O super homem-placa tornou-se um fiasco. Ninguém queria saber de um ex-herói. Quando andava na rua, olhavam-no com desprezo, soltavam desaforos. Um dia, quase foi linchado. Gritou por socorro e os outros homens-placa, por sorte, vieram lhe salvar. Eles o convenceram a voltar para o antigo emprego, esquecer aquela coisa de herói. Mas o dono das placas não quis saber de readmiti-lo. Não queria correr o risco de atrair a fúria do povo contra seus anúncios. Era herói, que voltasse a voar. Aquilo lhe serviu de inspiração. Não foi difícil recuperar a velha placa. O dono do ferro-velho ainda a guardava como suvenir. Durante toda a manhã, martelou sob a sombra da baixada do Glicério. Subiu até o viaduto, suspirou fundo e, um tanto temeroso, arremessou o próprio corpo na amplitude desolado sobre o Tamanduateí. Havia funcionado. Voava novamente com sua velha placa. Foi direto para o prédio da Barão de Itapetininga e atravessou a vidraça do terceiro andar. Deu de cara com o dono da loja de penhores, o homem que havia se recusado a lhe dar de volta o emprego. Exigiu que mostrasse todo o ouro que tivesse. Pesarosamente o cofre foi aberto. O homem-placa raspou ligeiro jóias, anéis e notas estrangeiras, antes de fugir vidraça afora. Na República, entre os mendigos que habitavam a praça, fez a partilha. Jogou do alto o ouro subtraído do patrão, em gestos teatrais. Depois deu as costas ao festim e sumiu para nunca mais ser visto. Mas os outros homens-placa garantem que ele ainda voa por aí, a palavra “ouro” gravada nas costas. (Uma versão curta deste conto foi publicada na Revista da Folha, em 23/11/08)

Comentários

Laura Fuentes disse…
Você arrasou neste conto. Uma pegada e tanto. Fiquei vaidosa por tê-lo como amigo quando o vi publicado na Revista da Folha. Sou sua fã e ponto.
Nelson Lourenço disse…
Amigos de letras a gente nunca esquece. Bjs

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