FIQUE POR PERTO QUANDO ESCURECER

Hoje meu irmão Luca faz aniversário, e minha mãe mandou fazer o mesmo bolo do ano passado. Chocolate, com bastante cobertura. Mas dessa vez, pode apostar que a tevê não vem entrevistar o Luca, nem saber como a gente vai festejar o aniversário dele. Se vier, vão encontrar bolo de chocolate na mesa, e o primeiro pedaço vai ser meu.
Foi sempre assim desde que o meu irmão começou a exigir festa de aniversário. Mamãe estranhou da primeira vez, mas não teve como negar o pedido. É normal. Os pais fazem qualquer coisa quando a gente está doente. E o Luca, coitado, sempre fraquinho. Tudo por causa da doença dele. Quando o Luca ainda era um bebê, os médicos disseram que nunca tinham visto um negócio daqueles. Sem poder comer nada, nem tomar leite, só se alimentar com suco de limão. Foi por isso que a tevê veio uma vez, no aniversário dele. E continuou vindo depois, várias vezes. Já me acostumei. Só acho um pouco chato no outro dia, quando as meninas da escola chegam todas curiosas e querem saber como foi, ou porque não foram me entrevistar. Alguém perguntou para o Luca como ele se sentia e ele respondeu: “Um ser humano vindo de outro planeta.” É mais ou menos o que eu sinto também, quando perguntam do meu irmão.
Ele nasceu dois anos antes de mim e este é o décimo segundo aniversário dele. Acho que o primeiro que ele comemorou foi o de oito anos. Pelo o que me lembro, tinha um monte de velinhas em cima daquele bolo, e ele apagou todas de uma vez. Num sopro só. Mamãe e Papai correram para ver se ele estava bem, porque, para o Luca, aquele era um esforço muito grande. Mas ele só sorriu e pediu para Mamãe cortar o bolo. Depois virou para mim e me ofereceu a primeira fatia. Ninguém come muito nessas festas do Luca, porque as pessoas parecem meio culpadas de estarem comendo e ele ali, só tomando suco. O mesmo suco de sempre. Mas eu faço questão de me empanturrar de bolo nessa hora. Chego até a me lambuzar. O que as pessoas não entendem é que não se pode contrariar o aniversariante. O Luca terminou aquela sua primeira festa cansado como nunca, mas feliz.

Outra coisa que ninguém vai saber são as brincadeiras inventadas pelo Luca. A diversão preferida da gente. Ele batizou nossas conversas sobre comida de “mastigadinha”. Criamos uma senha – “Vamos dar uma mastigadinha 9 – para começar a brincadeira. Papai uma vez se admirou com a risada do Luca depois que eu contei para ele como era a sensação de mastigar pipoca. Em quanto tempo você termina de lamber um pirulito 9 Como é o gosto de pizza 9 E churrasco 9 E a vitamina que o Papai toma antes de dormir 9 Guardo até hoje comigo a lista que a gente fez das coisas que o Luca ia dizendo que gostaria de comer, quando ficasse curado. Acho que a vitamina do Papai está em terceiro ou quarto lugar na preferência dele.
Papai é sempre o mais nervoso da família. Ele trabalha muito e vive preocupado com tudo. Quando o assunto é o Luca então... A festa deste ano já foi o suficiente para estressar o Papai. Mamãe me contou que ele sempre foi assim, mas piorou muito antes de eu nascer. Ele achava que podia acontecer comigo o mesmo problema do Luca. E não adiantava os médicos dizerem que aquela era uma doença rara, e que era praticamente impossível que eu tivesse a mesma coisa. Ele continuou acreditando que algo errado poderia acontecer até o dia em que eu nasci.
Mas Papai foi calmo o bastante para ensinar o Luca a ler e escrever. A escola só durou uma semana para o meu irmão. Foi o tempo em que o Luca se animou e pediu para Mamãe tirar o tubo do estômago dele, um trabalhão danado toda manhã, só para ele tentar assistir as aulas como um menino normal. Depois isso ele já não quis ir mais, e Mamãe e Papai resolveram que ele não precisava ir mais mesmo. Tudo por causa dos apelidos que começaram a inventar para o Luca. Fininho, Fantasma, Sombra, Palito, Caveirinha, Cabeção, Capacete. E o que ele mais detestou: Cadáver. Era muita judiação falar assim dele, então Papai e Mamãe deixaram Luca ficar em casa, em vez de sair para estudar. A única coisa que o meu irmão aprovou na escola eram as músicas que as crianças cantavam no pátio, antes de subir para a aula, Só mais tarde, quando eu entrei no mesmo colégio, é que eu entendi o que ele estava falando.

Depois que eu fui para a escola e aprendi a ler, o Papai não precisou mais ensinar o Luca. Eu mesmo passei a contar para ele o que era preciso aprender, sempre depois da minha aula. Por sorte, ele seguiu o meu próprio gosto, então eu risquei Ciências e Matemática das nossas aulas particulares. Logo ele aprendeu a recitar o nome completo da Princesa Isabel, a saber quantas braçadas era preciso dar para atravessar o Canal da Mancha e como se falava “me passa o guardanapo” em cinco línguas diferentes. Ele começou a impressionar todo mundo com esse tipo de conhecimento, então eu fiquei orgulhosa. Descobri que tenho muito jeito para ensinar.
Mamãe tentou acompanhar o Método Luca de Ensino, mas ela também está sempre ocupada, de um jeito ou de outro, e na maioria das vezes é por causa do meu irmão. Vejam só o trabalho que essa festa está dando, mas ela tira de letra. Mamãe aprendeu a dirigir depois de velha, só para levar o Luca até o hospital. Quando a tevê liga e quer entrevistar o Luca, é ela que combina as coisas. Uma vez convidaram a família toda para um programa de entrevistas, desses que passam na hora da novela, e que tem sempre um médico ou um advogado comentando a vida de outra pessoa. Mas Mamãe não deixou o Luca ir, nem ninguém. O Luca não reclamou, ele queria mesmo era ir na praia. Mamãe até deixou, mas ele ficou com medo de que os meninos o chamassem de Cadáver mais uma vez, por isso desistiu do passeio.
Eu me lembro da primeira vez em que ele apareceu na televisão. Eu era tão pequena que tiveram que me erguer para ver a tevê. Ainda sou baixinha para a minha idade, mas nunca quis crescer muito mesmo. A melhor fase da minha vida foi quando eu tinha o mesmo tamanho do Luca, mas durou pouco.
Naquele dia, havia um monte de gente na nossa casa, incluindo o Vovô e a Vovó. Acho que o Luca moraria com o Vovô e a Vovó se pudesse, porque eles nunca olham feio para ninguém, muito menos para o Luca, e estão sempre fazendo uma bagunça danada quando encontram alguma criança. Foi o Vovô que descobriu que era possível colocar corante no suco do Luca, sem alterar a receita do médico. Precisavam ver a cara de satisfação dele na primeira vez que experimentou o suco especial da Mamãe na cor azul.
Depois que o Luca apareceu pela primeira vez na televisão, começaram a mandar um monte de cartas para ele. Mamãe costumava ler as cartas, uma por uma, e depois ainda fazia um resumo dos melhores pedaços, a pedido do Luca. Só mais tarde é que eu fiquei encarregada de ler as cartas, mas chegou uma hora em que aquilo já não bastava para animar o Luca.
Meu irmão andou muito triste no último ano. Um dia ele virou e disse: “As pessoas querem me conhecer, mas ficam paralisadas quando olham para mim.” Acho que foi nessa vez que eu prometi que nunca ia deixar alguém olhar feio para ele. Estaria sempre ao seu lado.
Quando ele ficou bem doente, fazia de conta que estava morrendo, que estava ficando tudo escuro. “Por favor, fica comigo Amanda. Não me deixa sozinho no escuro”, ele falava, e eu apertava a mão dele bem forte. O Luca não queria nem mais beber o suco de limão, então a Mamãe tinha que colocar gelo na boca dele, quando estava dormindo. E foi assim até depois do Natal, quando o Luca desobedeceu todo mundo e comeu uma coxa de peru. Naquele dia o Vovô e a Vovó vieram e saíram chorando do quarto do Luca, daí eu percebi que a coisa era séria. E quando ele se foi, eu não estava por perto, para cumprir minha promessa. Foi o pior Natal da minha vida.
Mas estou melhor agora. Logo vamos cantar os parabéns. Papai ajeitou o retrato do Luca na sala, e o Vovô e a Vovó chegaram com um monte de presentes no porta-malas do carro. Mamãe preparou um jarro enorme com suco de limão e deixou na mesa, ao lado do copo do Luca, aquele que tem o Calvin fazendo careta, que ele tanto gostava. Ela disse que o Luca virou um anjo, e provavelmente está acompanhando tudo lá do céu.
Tudo que ele sempre pediu na sua festa de aniversário.

Comentários

Daniela disse…
Uma historia muito comovente!
es uma rapariga muito forte!
Laura Fuentes disse…
Já conhecia este teu texto, e ele é um dos teus melhores. Bom poder ter a emoção de lê-lo de novo.

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