A COROA DE FLORES

Os filhos chegariam cedo. Ele acordou como sempre, sem sofreguidão, um velho cansado da vida. Ao despertar estremunhado seria imposta, ele sabia, uma espera surda. Por uma viagem que ele não queria fazer.
Amulher já ralhava com ele, sem motivo aparente. Estava órfão aos 65 anos, sem lembranças felizes, sem lágrimas a derramar. Como pode um homem não chorar a morte da mãe? Se soubesse a resposta, poderia replicar a mulher, como era de seu feitio. Mas não sabia, e aquela falta de emoção o deixava envergonhado. Agarrou-se ao portão da casa que caía aos pedaços e de lá não sairia, até que Pedro e Raul chegassem para levá-lo até o enterro.
Enfim apontaram na ladeira, desviando o carro das crianças que disputavam uma ruidosa pelada. Pedro, o caçula, mal esperou ele destravar o portão. Com um cumprimento rápido, seguiu a passos largos pelo corredor que dava na cozinha da casa. Queria acabar logo com o protocolo familiar e seguir viagem. Raul, o primogênito, ficou ali em frente ao Celta prateado, manejando a chave do carro com ar superior. Nem se deu ao trabalho de cumprimentar a madrasta. A mulher tinha pouco apreço pelos dois recém-chegados e nisso ele, pesarosamente, com ela era obrigado a concordar.
Era um velho dado a suspiros. Enquanto imaginava que seus próprios irmãos já iam longe na estrada, em suas espaçosas caminhonetes de cabine dupla, ele adivinhou, com desconforto, o que em breve aconteceria. Os irmãos moravam no mesmo bairro, a dois quarteirões de distância. Tinham combinado saírem logo cedo e já deviam estar em Campinas, onde a mãe morrera. Ao convite para se juntar à pequena comitiva, ele respondeu, sem contundência, que era melhor seguir com os filhos para o funeral. Sujeito orgulhoso, soturno e disperso, ganhara a fama de péssima companhia para os sobrinhos vitaminados, cheios de energia. Ele estava mesmo enorme e um tanto devagar. Corpulento demais para se espremer no banco de trás daquele carro apertado. E no entanto foi o lugar que os filhos lhe ofereceram, como se o pai fosse um estranho. Sem remédio, suspirou resignado e embarcou no carro, com uma certa dificuldade. Notou, sem surpresa, que a mulher não se dera ao trabalho de vir se despedir.
Como se fosse um guia de viagem, Pedro emendava números. A avó quase chegara aos 100 anos. E o percurso até Campinas seria de mais ou menos 100 quilômetros. Depois, o silêncio. Raul majestoso, sem pressa, preocupado apenas com o carro recém-financiado, primeira vez que tomava a estrada com sua preciosidade. Ainda sem estéreo, apenas o zumbido seco do motor amaciando. Pelo menos os carros dos irmãos tinham som, murmurou o velho para si mesmo. Mas ele também não suportava os irmãos.
Teria a velha mãe recuperado lucidez suficiente para avaliar filho por filho antes de morrer?, ele pensou. No caso dela, nove crias, nove vidas que seguiram diferentes destinos. A mãe andava decrépita nos últimos anos. Visitá-la era uma tortura, diziam os irmãos, mas para ele valia a pena conversar com a distinta senhora. As lembranças dela vinham em relances, sem aviso, e quase sempre eram episódios perdidos da infância de toda a prole. A porteira que precisava ficar sempre fechada, para não perderem a vaca Branquinha. A jabuticabeira dando cada vez mais fruto, o cheiro de pão caseiro, o queijo coalho assado pela manhã (ela sabia o ponto certo que cada filho gostava). A mãe sempre benevolente, sempre disposta.
Olhando agora para seus próprios filhos, Raul e Pedro, ele ficou imaginando se não havia falhado com eles. Se não os furtara do mais básico amor. Mas então lembrou que os irmãos que viviam perto dele eram bem a imagem dos filhos, sem paixões, destituídos de qualquer sinal de nobreza. Nada podia levar a crer que o amor recebido proporcionaria seres humanos melhores. Sobrepujado no seu canto, ele suspirou, o coração compungido pela triste descoberta daquela manhã.
Sem paradas, devido ao atraso, chegaram à residência da irmã, onde a mãe viveu seus últimos dias. Raquel, sua sobrinha adolescente, tinha ficado para trás, ajeitando a casa onde a maioria viria almoçar depois do enterro. Saiu às pressas pelo portão estreito e, agradecendo a carona, foi logo dando instruções sobre o caminho para Raul. Acomodou-se no banco de trás, sem cerimônias, o olhar atento e simpático voltado para ele ali, encolhido no banco traseiro. Foi como se uma brisa entrasse no carro e dissipasse toda a névoa.
Ele aspirou o perfume da sobrinha, como animal enjaulado. A garota tinha a pele quase escura, sedosa e brilhante. Os cabelos encaracolados caíam sob os ombros e adornavam o rosto límpido, de destacada beleza. Levemente constrangida, Raquel desviou sua atenção para os primos, como quem precisa dar conta de outros afazeres após ter limpado a casa. Seguiu-se uma conversa curta entre os três, sem animação, enquanto o velho retornava ao seu mundo de pensamentos tortuosos. O Celta cheirava a detergente, teria Raul se dado ao luxo de lavar o carro?
Como se ouvisse os pensamentos do pai, o filho acelerou para que eles avistassem, ao longe, o cemitério onde a família havia comprado o jazigo. Caberia à matriarca ter a honra de inaugurá-lo.
Assim que estacionaram, Raquel o puxou pela mão:
- Vem ver a vó, tio.
Ela praticamente o arrastou até onde o corpo jazia, em um salão austero. No caminho, identificou alguns rostos conhecidos, que não via há tempos. Os irmãos do Mato Grosso, do Paraná, até mesmo gente vinda de Rondônia. E finalmente a mãe.
Estava cheia daquela beleza triste que ela tinha antes mesmo de se tornar um cadáver. A cabeça levemente desproporcional, o nariz cheio de uma pasta viscosa. Estranhamente se fixou naquele ponto do rosto, bem em cima da boca, como se esperasse que ela voltasse a falar de caminhadas até a porteira e da vaca Branquinha. Em vez disso, ouviu o soluço de Raquel, que começava a chorar.
A garota apertou sua mão e ele a puxou de encontro ao seu peito. Sim, era doce aquele perfume. Ele maneou levemente a cabeça para ver a reação dos outros ao redor, Pedro e Raul ali bem em frente, outros ao seu lado, uma fileira de cadeiras ocupadas por gente de preto mais adiante. Mas ninguém parecia desconfiar do que se passava com ele. Era apenas um tio amparando a sobrinha desconsolada. Nem mesmo a sombra serena da mãe podia fazer ele deixar de dar seu mais longo suspiro, que nada tinha de compaixão ou tristeza. Desejava Raquel e queria prolongar aquele momento, desfrutar de algo que ele ansiava e era puro.
Súbito, porém, desgarrou-se da menina e a encarou, mirando diretamente aqueles belos olhos negros lacrimenjantes, dois olhos que agora faiscavam diante do seu próprio olhar horrorizado. Dele emanava um estranhamento grande o bastante para ultrapassar os ombros bem-feitos de Raquel, tomando de assalto o salão onde a mãe repousava. A vergonha estampada no rosto. Queria fugir e se refugiar do semblante atônito da sobrinha, mas não tinha forças, estava imobilizado pela dor. Foi preciso que Raul viesse em seu socorro.
- Vamos pai. Vem sentar comigo um pouco lá fora.
Raul, o filho mais velho. O primeiro que colocara no mundo, o primeiro a sofrer com a sua incapacidade de amar. O que ele ainda iria viver? E Pedro, tão ínfimo em sua busca pelo o que é estudado e comum. Algum deles ainda poderia amar uma mulher como Raquel, fazê-la alcançar a felicidade? Porque ele mesmo, animal acuado, sentia-se dobrado pela vida. No fundo, jamais pôde aspirar a tal regalia. A vergonha, o peso de uma existência desperdiçada. Era apenas mais um bruto, como todos eles. Um bruto que destrói coisas belas.
– Sou só um velho – ele começou a soluçar, inconsolável – Um velho é o que eu sou.
Raul se esforçava para animá-lo, mas enquanto balbuciava palavras de conforto, Pedro chegou para consultar o pai. Corria uma coleta para comprar uma nova coroa de flores, maior e mais bonita. E como eles não haviam colaborado com nada para o enterro, era justo que dessem algum dinheiro a mais dessa vez.
– Só que estou achando duzentos reais um bocado de grana. Acho que o tio Jorge está querendo faturar uns trocados com essa vaquinha.
Mais uma afronta, o velho pensou. Para a sua velha mãe, para eles mesmos. Tinha de admitir que o irmão era capaz de fazer tal coisa, mas o fato de que os filhos imaginassem o mesmo que ele só aumentava a torpeza daquele momento. “São mesmo meus filhos, isso não posso negar.”
– Toma aqui, leva lá para o seu tio.
– Tem muito dinheiro aqui, pai.
– Não interessa, faz o que eu tô falando. Compra a coroa mais bonita que tiver.
Desvencilhou-se dos dois e, suspirando como nunca, voltou ao salão.
Raquel estava agora agarrada a uma mulher que ele mal conhecia, as duas de pé, imóveis, observando a defunta. Por longos minutos ele ficou ali, sem reação, num devaneio, apenas vislumbrando quem chegava e partia naquela contemplação muda do corpo de sua mãe. Então, sem que ninguém percebesse que se aproximava, uma mosca pousou bem no nariz da pranteada. Deslizou suavemente pela pasta de cânfora que saltava das ventas infladas da falecida. O velho, diante da mãe ultrajada em seu próprio enterro, não esboçou reação. Só pensou afinal que a vida é uma piada sem graça, que demora para ser contada. E ali estava o final da piada de sua mãe, o final dele mesmo, que já sentia próximo.
Só a mosca, ousada e indecorosa no nariz da morta, é que podia sorrir.

Comentários

Laura Fuentes disse…
Muito bom, Nelson....a tua mosca diz tudo naquela hora.

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