O BITUCA
Sumiu
o Bituca. No bar do Ceará, onde dava plantão, não foi mais visto. No
churrasquinho do Toni Gato, não apareceu mais. Deram falta dele também na
birosca do Caquinho, na barraca da dona Iza, até mesmo no mercadinho do China.
Desapareceu, virou fumaça, sem deixar vestígio em toda a Aclimação.
Juca
logo se deu conta da ausência dele. Gostava do
Bituca, mas não se podia dizer o mesmo da vizinhança. Aquela mania de só
aceitar o cigarro pela metade irritava muita gente. Vinha sorrateiro e interrompia
o sujeito naquele finzinho de tragada, pouco antes de a guimba ir ao chão.
Porque se o cigarro fosse descartado ele já não servia, tinha que ser dos que
ainda resistiam na boca do fumante, como se o Bituca quisesse sorver um
pouquinho daquele mesmo prazer efêmero. Cigarro inteiro então, tirado do maço,
nem pensar, o Bituca se sentia ofendido.
Uma
vez ou outra aquele insólito expediente quase lhe valeu uns sopapos, mercê da
insistência demonstrada diante dos incautos que não queriam fazer parte da sua
coleta. Quando isso acontecia, alguém chamava o Bituca de canto, ao lado do outro
sujeito, e fazia os dois fumarem o cachimbo da paz.
Corria
a lenda de que o Bituca, nos últimos meses, passava cada vez mais tempo na Cida
Cabeleireira, ajudando a despachada mulher a fechar o negócio e – pura
imaginação ou intimidade devassada pela própria falastrona – permanecendo ativo
para outros serviços. Isso ajudaria a explicar o aspecto cada vez mais
cadavérico do Bituca, o ar pálido, aquela pele solta debaixo do pescoço,
denunciando anos de exposição e farejo ao cigarro alheio.
Mas
o Bituca tinha outras pousadas. Fazia uns bicos no inferninho da Machado de
Assis, quase em frente ao escritório onde Juca trabalhava. Lugar que todos na
redondeza conhecem, mas muitos fingem ignorar. Ali o Bituca trocava lâmpadas,
dava uma geral na fiação elétrica e – impossível dizer sem segundas intenções –
verificava o encanamento. O fato é que ele acabava ficando, dormindo em algum
quarto sórdido, bem ao lado das garotas que pernoitavam na casa. Somando essa
informação aos pegas, cada vez mais evidentes, que ele dava na cabeleireira,
era possível afirmar que a vida sexual do Bituca era bem mais intensa que a de
Juca.
Em
mais uma de suas manias, ele havia desenvolvido um sistema bastante simples
para classificar o potencial das mulheres na cama: as comparava às patentes do
exército. A gerente do estacionamento era major; a mulher do Mané Despachante,
“uma princesa”, era tenente; a japinha do pastel de quinta-feira era sargento.
E a Cida, Bituca?. “General, com certeza.”. A Lindinha, bom essa aí é cadete
ainda. Mas tem futuro na hierarquia.
A
Lindinha era menina tímida que descia a rua quase todos os dias no mesmo
horário. O Bituca sabia que Juca estava tentando, sem sucesso, chamar a atenção
dela. Um dia, sem mais nem menos, quando Juca já tinha desistido de achar o
Bituca e paquerar a garota, flagrou Lindinha entrando sorrateiramente no
inferninho.
Escolheu
um fim de tarde qualquer e, num movimento calculado, entrou na “igreja”, que
era como o Bituca costumava se referir ao lugar. Mas não era seu dia de sorte.
Encontrou a casa às moscas, duas garotas solitárias num sofá decadente e um
bêbado no balcão do bar. Nem sinal da Lindinha. “O Bituca começou a me ajudar
numa reforma, depois sumiu”, explicou a dona do inferninho, enquanto passava ao
Juca as moedas do jukebox. Para homenagear o Bituca, escolheu Smoke on the
water” para tocar, mas a música não animou muito o ambiente.
Foi
então que Juca teve a chance de passar a história a limpo, com o Bituca em
pessoa. Estava distante da Aclimação, perambulando pelas ruas de Pinheiros,
quando o avistou. “Essa lei antifumo é a melhor coisa que poderia acontecer”,
ele disse ao amigo, como cumprimento. “O pessoal fica aqui fora fumando, batendo
papo, e eu só preciso puxar conversa para conseguir um cigarro do jeito que eu
gosto.”
Dali
o Bituca seguia para a Vila Madalena, aspirar o ar boêmio, com sorte ouvir
algum ensinamento de vida de um bando de universitários, entre uma baforada e
outra.
─ E a Lindinha?
─ O que que tem
ela?
─ Trabalhava no
inferninho?
─ Claro.
─ Porque você
não me falou?
─ Pensei que
você soubesse.
─ Com aquele
jeito dela, todo recatado...
─ Puro charme. Ei,
tem um isqueiro aí?
─
Você sabe que eu não fumo. Mas o pessoal aqui deve ter fogo – Juca respondeu,
enquanto se virava para encontrar um isqueiro para ele.
Quando
voltou os olhos para o ponto onde o Bituca estava, o danado tinha desaparecido.
Era
daqueles sujeitos que adoram deixar a conversa pela metade.
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