CARTA AO PAI

Quis o destino que fosse numa noite de domingo, gélida como os dias de minha infância, no oeste desbravado do Paraná, onde você era uma lenda nos gramados da várzea. Daqueles dias de glória sobraram o andar meio torto, o olhar desconfiado de zagueiro que não gosta de ninguém invadindo sua área.
Os domingos lhe pertenciam, havia rituais a serem cumpridos. Poucos podiam desfrutar desses momentos, e lá ia eu, favorecido pelo sangue, a segui-lo pelas ruas do bairro. Cutucando a melancia no mercado, comprando o jornal, acenando a cada esquina. Pois, mesmo reservado e resmungão, era você também uma lenda nas imediações. Todos sabiam de seu itinerário, até mesmo, desconfio, aquele ladrão que o tentou assaltar às cinco da manhã e você –  corajoso e inconsequente – o desarmou e o botou pra correr.
Sim, muitos notaram os rituais há tempos abandonados, desde a sua primeira despedida, em março, mas poucos sabiam do seu sofrimento.  Trabalhar e beber a sua cerveja aos domingos, os últimos vícios. Aquela mesa amarela onde sentávamos no alto da Barreira Grande, de onde ouvia você recusar todos os convites que lhe faziam para ir a festas, churrascos, batizados, visitar enfermos, dar um alô para os parentes, aquela mesa cercada pela fumaça do frango assado está vazia.
Você era uma rocha imperturbável de quase dois metros. Só deixava a quietude daqueles domingos quando alguém ousasse, em tom de brincadeira, roubar a bebida de seu copo, algo que nem mesmo eu conseguia, sendo obrigado a tomar minha própria cerveja em separado.
Você que havia descoberto São Paulo de calça boca de sino e cabelo black power, que amava os excessos à mesa (aos sete, me incentivou a comer cinco pastéis de feira de uma só vez), adorava ganhar bonés, fazia a alegria dos netos, você, orgulhoso e refém de sua teimosia, nos deixou no último domingo, dessa vez em definitivo.

Descanse em paz, meu velho. Voltarei à sua mesa neste domingo, para uma última homenagem. Pois não há vida que não mereça ser vivida e celebrada, mesmo em silêncio.

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