ESSA LENGA LENGA DE DAVID COPPERFIELD
A família Glass é uma criação de um dos meus escritores favoritos, J.D. Salinger. Os Glass são geniais, excêntricos, sofisticados. Em Seymour: Uma Introdução, Buddy, o caçula, pede um livro de presente para o irmão, mas alerta: precisa ser um romance de autor que comece com a letra E, pois até a letra D ele já havia esgotado tudo o que havia para ler. Precoce o menino, não?
Lembro sempre dessa passagem quando o assunto são as obras e autores que já li. Não foram muitos como o tal do Buddy Glass, bem menos do que desejaria ter lido. Mas eles estão todos aqui comigo e carregam histórias e aprendizados de uma vida. Bem, quase todos. Alguns empréstimos nunca foram saldados pelos amigos, e eu devo ter aqui também pelo menos uma dúzia de livros que foram incorporados na surdina à minha biblioteca pessoal.
O acervo está bem guardado – e periodicamente inspecionado. Tempos atrás, telhado quase em ruínas, a casa da família sofreu uma reforma. Por algum motivo insondável, no intervalo de curta temporada em que estive fora, longe dos arranjos domésticos, a cama do quarto mudou de lugar. Desde aquela alteração intempestiva, orquestra pelas mulheres, me deito de frente para três estantes espremidas e abarrotadas de literatura, dicionários de idiomas, revistas de bordo e uma coleção jurássica de CDs. No final, gostei da arrumação. No exílio da pandemia, vou dormir todas as noites olhando para os livros que recolhi durante a tortuosa minha vida de leitor.
O primeiro que comprei com meu próprio dinheiro não está mais à vista. Perdeu-se pelo caminho. Era uma versão de David Copperfield, adaptada para o português, fiel ao caudaloso original de Dickens (a caixa com a íntegra do texto editada pela Cosac Naify pesa mais de dois quilos e vale uma nota. Virou item de colecionador).
Na minha modesta aquisição, meu David, o menino de olhar tristonho da capa em papelão vermelho, parecia me convidar, envergonhado. Compre esse livro, ele dizia. Você não vai se arrepender. Levei-o para casa e nunca mais fui o mesmo.
Mesmo essa edição mais simples se destacava, pelo número de páginas, dos demais volumes da coleção que a Ediouro publicava com clássicos recontados para o público juvenil. A gente poderia encontrá-los todos perfilados e expostos na loja que a editora tinha na rua Benjamin Constant, ao lado da Praça da Sé. Ali comecei minha jornada de leitor. Ao longo de meses, investi o dinheiro que ganhava limpando aquários em pelo menos uma dezena de livrinhos – tesouros com versões assinadas por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos de obras como Os Miseráveis, O Fantasma de Canterville e As Aventuras de Tom Sawyer.
A própria viagem até a livraria era uma aventura. Em algum momento no começo dos anos 80, eu era um menino do Tatuapé, crescido na periferia de São Paulo, que estava descobrindo o mundo. Tomava o metrô – a estação estalando de nova, ali na Radial Leste – e me perdia no velho centro da cidade. Começava a escrever e a me interessar por literatura, o que me fez, desde aquela época, já distante, um aficionado pelos sebos que ainda resistem naquela região.
Dá para afirmar que muitos dos autores de – literalmente – cabeceira desse meu itinerário surgiram a partir dessas incursões por esses refúgios. Os russos, Tolstói, Tchecov e Dostoiévski. Os americanos, vários, Bukowski, Capote, Steinbeck, Hemingway, Fitzgerald. Da terra de Dickens, Shakespeare, Emily Bronte e Somerset Maugham. Os poetas: Rimbaud, Neruda, Drummond e, ele de novo, Shakespeare, cujos sonetos foram magnificamente traduzidos pelo professor Péricles Eugênio da Silva Ramos, uma lenda na escadaria da Paulista 900, onde tínhamos muitas discussões políticas – era época do Diretas Já – e algumas, literárias e existenciais.
Houve também Clarice. E Vargas Llosa (Tia Júlia e o Escrevinhador fundiu minha cabeça). E João Antônio. E o mezzo contista mezzo poeta mundano Dalton Trevisan. Amém!
O primeiro livro que li e me despertou a vontade de ser escritor fui encontrar nas saudosas estantes do Centro Cultural, em uma daquelas longas tardes solitárias que passei ali, nos idos de 1987 e 1988. Era – vejam, só – O Apanhador no Campo de Centeio, com a capa clássica, que, segundo a lenda, foi aprovada pelo Salinger em pessoa.
Mas essa é uma outra história.
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