SUOR LITERÁRIO
Um retrato do Brasil que trabalha e sonha na obra de Giovana Madalosso e José Falero*
“O Brasil só enxerga a periferia como fonte de mão-de-obra barata."
Cometida em uma recente entrevista, a frase acima é de Ferréz, autor que sabe muito bem o que significa ser invisível e estar apartado de um mundo de oportunidades, sejam elas econômicas, sociais ou culturais. A literatura dele e de outros escritores que vivem nos capões e comunidades periféricas persiste a duras penas, mas é sempre intensa e entusiasmada na sua luta pela sobrevivência num Brasil onde as desigualdades se acirram, onde anda falando o básico pra uma parcela cada vez maior da população.
Nesse universo marginal, a poesia é um luxo para muito trabalhador. Quando há ânimo para algo além da dura rotina, melhorar de vida é pensamento muito mais recorrente entre assalariados que precisam atravessar a cidade para ganhar o sustento no país paralelo dos mais afortunados. Os que sonham podem estar condenados. Ou salvos, dependendo do ponto de vista. São esses brasileiros – com aspirações de ordem prática e outras não tão palpáveis assim – que acabaram se tornando protagonistas de duas romances elogiados da atual safra da literatura brasileira: Os Supridores, de José Falero, e Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso, ambos lançados no ano passado, pela editoria Todavia.
Em sua primeira narrativa longa, o gaúcho Falero retrata à exaustão de um GPS as ruas de uma Porto Alegre que não consegue conciliar ricos e pobres. Uma capital como outra qualquer do Brasil, onde a escolha de muitos parece se limitar a “ser bandido ou ser escravo”. Um grupo liderado por dois repositores de supermercado (os supridores do título) decide-se pela primeira opção para subir de vida. Viram empreendedores – palavra-chave no ideário liberal vigente – que enxergam no tráfico de maconha o caminho que se apresenta para subirem na pirâmide social. É a chance de terem “uma vida bala”, como diz Pedro, o líder da turma. Leitor voraz, verborrágico e persuasivo, ele não só arregimenta sócios improváveis, como também os convence de dividirem todos os lucros por igual, praticando o socialismo que faz sua cabeça.
No primeiro terço do livro, são as doutrinações de Pedro junto a Marques, seu discípulo mais fiel, que dão o tom da história. O registro envolvente do palavreado das ruas, muito bem executado nos diálogos por Falero, contrasta com uma narrativa sólida, em terceira pessoa. Cada intervalo do trabalho dos dois parceiros no supermercado é uma oportunidade para extensas conversas eivadas de ensinamentos: “Os rico não quer que o mundo seja justo, mas os pobre também não quer”; “acreditar na meritocracia te faz mal”; “muito dinheiro significa sempre muito trabalho”.
Pedro quer ganhar dinheiro suficiente para mudar de vida, mas não se ilude. Em que pese a inocência de imaginar que pode escapar ileso do jogo pesado do tráfico, sabe que ele e sua quadrilha estarão sujeitos a matar na nova empreitada. Porém, ainda que seus temores acabem se confirmando, é o peso de uma sabedoria errática, de uma lógica humanizante que não se coaduna com a realidade perversa (“burro não ganha dinheiro” lhe diz um contraventor aposentado) que moldam seu destino, São as iluminações deslocadas que irão ao final decidir o futuro dele.
Suíte Tóquio, da paranaense Madalosso (radicada na capital paulista), adota a construção alternada de dois focos narrativos em primeira pessoa. Uma dessas vozes é a da patroa. A outra é de Maju, babá que mora no mesmo lugar onde ganha o pão, sob condições que a acompanham desde o momento em que chega para trabalhar em São Paulo, vinda do interior do Paraná.
Após ser explorada por madames ociosas– e ser violentada por um zelador cafajeste, o que lhe incute o desinteresse pelos homens –, Maju encontra uma posição um tanto mais digna na casa de Fernanda, uma executiva do audiovisual em ascensão na carreira, e de seu marido, Cacá. Sem dúvida uma evolução naquela trajetória humilde, mas que ainda a sujeita à desumanização e à precariedade, Seu posto de trabalho a faz ser mais um integrante do “exército branco” de serviçais que transitam em Higienópolis, um privilegiado bairro paulistano.
Fernanda, a patroa, padece de um sentimento de frustração em relação ao naufrágio do casamento, a pouca atenção que dedica à filha, Cora. Não bastasse se envolver com outra mulher – o que lhe resgata o interesse pelo sexo – e a impotência no papel de mãe, ela precisa lidar também com a expiação de seus pecados como contratante e empregadora. Para se sentir “menos escravocrata”, resolve equipar o quarto da babá com tevê e frigobar. O cômodo onde Maju se recolhe é a Suíte Tóquio do título.
Contudo, os mimos da senhoria não são suficientes para apaziguar os pensamentos divergentes de Maju. Assim como o Pedro de Os Supridores, ela também busca refúgio na leitura. Solteirona, sem filhos, apegada à religião, Maju enxerga uma saída ao sequestrar a menina que fica aos seus cuidados, planejando um futuro idílico ao lado de Cora.
Enquanto isso, sem perceber o plano de Maju, a executiva em crise não consegue disfarçar o ranço elitista. Seja nas menções às condições das crianças na Índia ou ao distante bairro do Tatuapé. Seja no modo como descreve o olhar que dirige aos seus subalternos. Mas no final a sensação de culpa – que importuna a consciência de tantas outras Fernandas – aflora e a constrange no momento em que é conscientemente percebida. É difícil ser elite no Brasil! Parece que atravessar a linha que divide os prósperos e os despossuídos é algo impossível. “Na sociedade, os iguais se atraem”, justifica-se a mãe de Cora.
Ao final, a percepção da diferença não produz efeitos práticos. Tanto Fernanda quanto Maju andam em círculos, sem salvação. Talvez porque, independente das condições diversas em que vivem, ambas são vítimas da incapacidade de amar.
No final, conta bancária polpuda ou não, a estranheza do amor é para todos.
* A mesa que reuniu os dois autores abriu a FLAC – Festa Literária do Ceará, em novembro de 2021.
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