UM NEGACIONISTA NO CAMINHO*

Ali, na fila do correio, encharcado pelo tédio, eu não conseguia pensar em nada além do gordo esbaforido do supermercado. Não era um gordo qualquer. O homem assinava Herman nas gravações. Mas aquele não era provavelmente seu verdadeiro nome. Percussionista muito talentoso, segundo a avaliação de papai (“tem uma pegada maneira”). Um pouco exibido além da conta, é verdade. Cheio de floreios e afetações. Enfim, Herman ou não, o pau no cu veio andando pelo corredor do supermercado, suando na testa sob uma máscara transparente, daquelas rígidas, de acrílico, o rosto oculto pela montanha de papel higiênico que ele levava nas mãos. Defronte à prateleira de aerossóis, invadida por frascos de álcool gel, o homem finalmente parou. Arremessou ofegante o enorme pacote com três dúzias de rolos finamente perfumados no carrinho de compras sobressalente (o primeiro já estava tomado por mantimentos até a tampa). Em seguida, ergueu a cabeça envolta no acrílico da máscara, e se deparou com meu olhar padrão “bastante curioso” à sua frente. Um rosto familiar, mas não o bastante para que Herman deixasse de demonstrar grande desconforto com meus olhos pregados nele. Ficou estático por alguns segundos, tão imóvel que pareceu parar com o suadouro. Talvez estivesse com medo de que me adiantasse em sua direção. Eu andava fazendo aquilo ultimamente. Encarando as pessoas. Acho que a máscara me deixava um tanto corajoso demais. A máscara era o horror por entre o qual os destemidos navegavam. Era o nojo, a renúncia. Mas, sinceramente, não acredito muito em tudo o que andaram falando sobre máscaras e a pandemia. Sou o que eles chamam de negacionista. Um negacionista secreto. ̶ Hã...oi, Benjamim. Soube do seu pai. Que coisa terrível. Sinto muito. Dito isso, o Herman seguiu pelo corredor, tão logo recuperou seus movimentos para pilotar os dois carrinhos. Como se estivesse me punindo pelo atrevimento de encará-lo, conseguiu me aborrecer duas vezes. A primeira, me chamando de Benjamin. A segunda, lembrando da morte de papai. * Esse texto é um capítulo da novela A Garota do Sorriso Oculto (disponível em https://www.amazon.com.br/dp/B09GDLS96G/ref=cm_sw_r_wa_awdo_FPW0Y258XKK1DJPMFR5J).

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