NA ATMOSFERA ATROZ

A língua é viva. E os linguistas, ao que consta, também. O dicionário já teve ter incorporado algum equivalente a stand up em português.
Ao subir a Aspicuelta, coração da Vila Madalena, penso em qual seria essa palavra e lembro de um veterano professor da faculdade de jornalismo. O ranzinza, amado e execrado na mesma medida, não admitia que usássemos qualquer palavra de origem estrangeira quando houvesse já opções válidas na língua-mãe. Performance, por exemplo. Para que lesar a flor do Lácio, se a gente podia escrever simplesmente desempenho? Uma vez ousei sapecar um know-how em uma dissertação e foi duramente admoestado em público. Só me restou rir de volta da descompostura. A vida já era complicada, mas pelo menos era bem mais divertida.
Não espero muito desse tal show de gente-em-pé-tentando-ser-engraçadinho-pra-ganhar-uns-trocados, o que, no fundo, traduz exatamente o que é um stand up. Mas não posso recusar o convite e pelo menos será a chance de rever pessoas, tanto tempo depois de ficar mofando em casa.
Também não sou tão íntimo da Vila Madá para chamá-la assim. Mas sempre me senti acolhido naquelas bandas da cidade. Dessa vez, no arrepio da noite fria, não há um tímido indício de animação. Bares desolados. Garçons de guarda como seguranças inúteis. Manobristas de mãos abanando. Gente rara e apressada. De olhar cansado. Estariam, como no título daquele filme, se guardando para o Carnaval? Um Carnaval fora de época, forjado como a alegria triste de um palhaço que se obriga a sorrir.
A pandemia aquietou ambições, esgotou possibilidades. Merecemos mesmo esse mundo ou é melhor nos recolhermos de vez à aquiescência do isolamento?
Talvez os comediantes tenham a resposta.
A recepcionista da casa demora a entender meu nome. Anota-o com letra hesitante. Sou um dos primeiros a chegar, ocupo o topo da lista. Escolho sem perceber a mesa 17, número de mau agouro. Penso em mudar, mas quando vejo já tenho a cerveja à minha frente. Os garçons estão eficientes como nunca nesses tempos sombrios.