FLAUBERT E DOSTOIEVSKI
Novembro marca o nascimento de Dostoievski. Dezembro, Flaubert. Cada um a seu tempo e estilo se dedicou a perscrutar o que a alma tem de insondável.
Ambos eram filhos de médicos. O doutor Flaubert era o cirurgião-chefe do hospital de Rouen, na Normandia (“meu pai salva os estúpidos para que continuem com sua estupidez”). Dostoievski pai também era militar e clinicava no Hospital Maria, em Moscou.
Enquanto Flaubert cultivou sua escrita em uma existência solitária, vez ou outra interrompida por uma viagem até Paris para se encontrar com os literatos da época, Dostoievski precisou conviver com situações em que precisava escrever com urgência – atuou também no jornalismo – para pagar as dívidas (inclusive as que contraía nas mesas de jogo, vício que manteve até o fim). Porém, o ensaísta Otto Maria Carpeaux argumenta, em artigo publicado na extinta revista Manchete, que o russo não era descuidado com sua produção (“seus manuscritos estão cheios de modificações, correções, emendas, linhas riscadas e reescritas”), aproximando-se, portanto, do rigor do francês.
Bigodes pronunciados, olhar pueril, um solitário que se comprazia em retratar vidas ordinárias, Flaubert publicou relativamente pouco. Algumas histórias ele nem chegou a levar ao prelo. Gostava de trabalhar em seus esboços, escrevendo e reescrevendo. Conforme expressou em uma de suas correspondências, queria que seu estilo fosse “tão rítmico quanto o verso e tão preciso quanto a linguagem da ciência”.
Flaubert é considerado um artífice da narrativa onisciente. Sua escrita é elaborada e elegante, refinada, fria até ao buscar a palavra justa, o distanciamento das paixões. Suas obras tornaram-se pedras angulares para o realismo, influenciando muitos outros escritores, sem se desvincular do romantismo, com personagens emblemáticas, a exemplo de Emma Bovary, que lhe rendeu fama e um processo por obscenidade, e da criada Felicité, do conto Um Coração Simples.
Registro realista de uma criatura dominada pelas ilusões românticas, Madame Bovary (1857) é seu livro mais famoso. Muito se especulou sobre quem teria inspirado a personagem-título, uma sonhadora que se casa com um médico de província. Insatisfeita com sua vida enfadonha, leitora de romances baratos, Emma se envolve com outros homens, sem se importar com as consequências e seu inevitável declínio. O comportamento de quem se entrega às ilusões e renova esse sentimento, mesmo contra as adversidades, passou a ser conhecido como “bovarismo”.
Com a frase “Madame Bovary sou eu”, Flaubert, consciente de seu papel como criador (e observador social), tentou responder a audiência da época, boa parte dela inconformada com o adultério da protagonista. “O artista deve ser como Deus: invisível, mas poderoso”, defendia o escritor francês.
O atormentado Dostoievski teve biografia muito mais atribulada do que Flaubert. De origem católica, não lhe faltariam dissabores para colocar à prova sua fé. Uma série de culpas o dilaceraram durante a vida, começando pelo fato de ter desejado a morte do pai (Mikhail Dostoievski faleceu quando o escritor tinha apenas 18 anos, pouco depois de ele ter perdido a mãe, de tuberculose; uma das versões sustenta que o patriarca tenha sido assassinado pelos próprios servos).
Anos depois, o escritor seria condenado ao fuzilamento por motivações políticas; momentos antes da execução, porém, teve sua pena alterada para o exílio na Sibéria. Era epilético e teve grandes decepções amorosas. Tudo isso se refletiu em sua escrita, onde os personagens gritam, tentam exorcizar seus fantasmas. Só encontrou uma certa paz de espírito no final da vida, casado com sua secretária e cercado de filhos.
Dostoievski elevou-se como ficcionista/pensador, tornando-se uma influência para os existencialistas. Escritores como Beckett e Camus beberam na sua fonte. Para ele, apesar dos pendores místicos, vida e arte não tinham sentido.
É justo também inclui-lo entre os precursores da moderna psicologia, pelo modo como descreve as emoções. Nietzsche dizia que o escritor era “o único psicólogo com quem tenho algo a aprender”.
Para o teórico russo Mikhail Bakhtin, a obra de Dostoievski inaugura o que ele chama de polifonia ou romance polifônico, em que a narrativa dá vazão a diversas vozes, que se relacionam umas com as outras.
Entre os personagens de Dostoievski estão lunáticos, profetas, santos, prostitutas, jogadores como ele. Especialistas apontam uma certa predileção em seus livros por tipos amorais, que não se vinculam a doutrinas ou seguem uma ética qualquer. A luta entre o bem e o mal e seus paradoxos são onipresentes em sua obra. Em Crime e Castigo (1866) e Os Irmãos Karamazov (1880), ele tenta elaborar o dualismo entre culpa e redenção que o marca desde a mais tenra idade. O resultado são livros fundamentais, lidos e relidos até hoje.
Gustave e Fiodor, dois monumentos da literatura mundial, erigiram suas obras sobre o que o homem tem de mais intenso. Vale a pena (re) descobrir.
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